carta sem destinatário descoberta por ela numa caixa de sapatos esquecida dentro do armário do quarto.
sabes, amor, (e chamo-te amor, sim. não porque o sinta ou te sinta ou isso tenha sequer um valor, mas porque quando digo o teu nome – e disse-o muitas vezes – ele ressoa em mim vago e distante e, por momentos, é como se não o conhecesse, como se fosse o nome de um estranho, de alguém que me foi apresentado por um amigo de um amigo que se cruzou comigo ontem ou anteontem ou antes disso e não deixou nada, que é o que os amigos dos amigos costumam deixar. não me esforcei para que assim fosse. aconteceu. e isso faz-me pena, acredita.) lembrei-me hoje, não sei porquê, de um tio meu.
os meus pais tinham um pequeno T2 na nazaré onde costumávamos passar os fins de semana de bom tempo e esse meu tio costumava ir lá de visita. ele e o meu pai passavam as tardes sentados na sala minúscula a discutir o mundo e o silêncio, e eu, por algum motivo que agora me escapa, sentava-me com eles.
não devia ter mais de sete anos... sim, não podia ter mais de sete anos...
é uma memória quente, amor, (desculpa, já falámos disto) a do meu pai sentado no seu cadeirão gasto, com o cinzeiro de pé ao lado (um africano escanzelado semi-despido a segurar um alguidar acima da cabeça) e a cigarrilha com aquele cheiro enjoativo sempre acesa na mão direita. o meu tio sentava-se no sofá em frente. “senta-te aqui comigo, rapaz” era o que ele dizia, e batia a mão aberta na almofada. eu (porque era obediente, lembro-me agora) sentava-me.
e aqui entra a razão de tudo isto. a razão (só pode ser esta) pela qual este meu tio em que nunca penso me assolou hoje sem que o consiga sacudir.
é que este meu tio tinha o hábito de passar essas horas de conversa a comer rebuçados. e eu, tão perto que estava dele, conseguía ouvi-lo (e ele sabia) a desembrulhá-los dentro do bolso do casaco, conseguía ver (ele sabia que eu conseguía ver) os seus dedos atarefados a esticar o papel plástico por detrás da fazenda e, sobretudo, sentia o hálito frutado da sua boca sempre que ele expirava na minha direcção.
nunca me deu nenhum.
e eu, criança, ficava ali. à espera de ser presenteado com um (bastava um) rebuçado que nunca chegava. dias e dias de “ontem esqueceu-se, hoje é que é”.
foi (acho eu) o meu primeiro encontro com a crueldade.
não sei porque é que me lembrei disto, nem sei até que ponto isto é uma memória fiel do que realmente acontecia. porque (sei agora) nós enchemos os espaços vazios da memória com aquilo que gostávamos de ter guardado. e mesmo as coisas que recordo (cada vez menos) de nós (as tardes em frente ao rio em que eu dormia o que não dormia em casa, as viagens de autocarro nos bancos de trás, os fins de semana em mira, o ajudar as tuas irmãs a fazer os trabalhos de casa, os últimos pisos de prédios quase abandonados, a tristeza sempre presente dos olhos da tua mãe, o pensar em fugir, as noites de descoberta, e o pouco que faz sentido depois disso) estão inundadas de cores que nunca tiveram, de frases que nunca disseste (por eu não saber ouvir e por não saberes como dizê-las), de coisas que nunca chegaram a ser feitas e de sentimentos que só existiam por não os sabermos nomear.
custa muito subtrair tanto. mas tudo isto se subtrai sozinho. sem o mínimo esforço daquele que fica a perder.
de qualquer forma, este meu tio morreu há muito.
eu cresci.
e agora, amor, como os rebuçados que quero.
2 comentários:
Gostei deste texto e especialmente de o ler alto. Uma actriz não consegue deixar de pôr à prova as desgraçadas palavras. A persona 1 e a persona parenteses ( a mais interessante devo dizer, amor). Uma actriz também não consegue resistir a uma bela ginástica fonosemântica logo pela manhã.
"As coisas que recordo de nós estão inundadasde cores ue nunca tiveram, de frases" que nunca disse (por não as conseguires ouvir e por eu não as saber dizer)"de coisas que nunca chegaram a ser feitas..."
Enviar um comentário