quarta-feira, 8 de outubro de 2008

o mistério das palavras que um dia quiseram dizer alguma coisa


carta sem destinatário descoberta por ela numa caixa de sapatos esquecida dentro do armário do quarto.

sabes, amor, (e chamo-te amor, sim. não porque o sinta ou te sinta ou isso tenha sequer um valor, mas porque quando digo o teu nome – e disse-o muitas vezes – ele ressoa em mim vago e distante e, por momentos, é como se não o conhecesse, como se fosse o nome de um estranho, de alguém que me foi apresentado por um amigo de um amigo que se cruzou comigo ontem ou anteontem ou antes disso e não deixou nada, que é o que os amigos dos amigos costumam deixar. não me esforcei para que assim fosse. aconteceu. e isso faz-me pena, acredita.) lembrei-me hoje, não sei porquê, de um tio meu.

os meus pais tinham um pequeno T2 na nazaré onde costumávamos passar os fins de semana de bom tempo e esse meu tio costumava ir lá de visita. ele e o meu pai passavam as tardes sentados na sala minúscula a discutir o mundo e o silêncio, e eu, por algum motivo que agora me escapa, sentava-me com eles.
não devia ter mais de sete anos... sim, não podia ter mais de sete anos...

é uma memória quente, amor, (desculpa, já falámos disto) a do meu pai sentado no seu cadeirão gasto, com o cinzeiro de pé ao lado (um africano escanzelado semi-despido a segurar um alguidar acima da cabeça) e a cigarrilha com aquele cheiro enjoativo sempre acesa na mão direita. o meu tio sentava-se no sofá em frente. “senta-te aqui comigo, rapaz” era o que ele dizia, e batia a mão aberta na almofada. eu (porque era obediente, lembro-me agora) sentava-me.

e aqui entra a razão de tudo isto. a razão (só pode ser esta) pela qual este meu tio em que nunca penso me assolou hoje sem que o consiga sacudir.
é que este meu tio tinha o hábito de passar essas horas de conversa a comer rebuçados. e eu, tão perto que estava dele, conseguía ouvi-lo (e ele sabia) a desembrulhá-los dentro do bolso do casaco, conseguía ver (ele sabia que eu conseguía ver) os seus dedos atarefados a esticar o papel plástico por detrás da fazenda e, sobretudo, sentia o hálito frutado da sua boca sempre que ele expirava na minha direcção.

nunca me deu nenhum.

e eu, criança, ficava ali. à espera de ser presenteado com um (bastava um) rebuçado que nunca chegava. dias e dias de “ontem esqueceu-se, hoje é que é”.

foi (acho eu) o meu primeiro encontro com a crueldade.

não sei porque é que me lembrei disto, nem sei até que ponto isto é uma memória fiel do que realmente acontecia. porque (sei agora) nós enchemos os espaços vazios da memória com aquilo que gostávamos de ter guardado. e mesmo as coisas que recordo (cada vez menos) de nós (as tardes em frente ao rio em que eu dormia o que não dormia em casa, as viagens de autocarro nos bancos de trás, os fins de semana em mira, o ajudar as tuas irmãs a fazer os trabalhos de casa, os últimos pisos de prédios quase abandonados, a tristeza sempre presente dos olhos da tua mãe, o pensar em fugir, as noites de descoberta, e o pouco que faz sentido depois disso) estão inundadas de cores que nunca tiveram, de frases que nunca disseste (por eu não saber ouvir e por não saberes como dizê-las), de coisas que nunca chegaram a ser feitas e de sentimentos que só existiam por não os sabermos nomear.

custa muito subtrair tanto. mas tudo isto se subtrai sozinho. sem o mínimo esforço daquele que fica a perder.

de qualquer forma, este meu tio morreu há muito.
eu cresci.
e agora, amor, como os rebuçados que quero.

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei deste texto e especialmente de o ler alto. Uma actriz não consegue deixar de pôr à prova as desgraçadas palavras. A persona 1 e a persona parenteses ( a mais interessante devo dizer, amor). Uma actriz também não consegue resistir a uma bela ginástica fonosemântica logo pela manhã.

Anónimo disse...

"As coisas que recordo de nós estão inundadasde cores ue nunca tiveram, de frases" que nunca disse (por não as conseguires ouvir e por eu não as saber dizer)"de coisas que nunca chegaram a ser feitas..."